Em tempos de redes sociais, as informações se propagam em uma velocidade espantosa e a quantidade de pessoas alcançadas é incalculável. Especificamente em nossa área de atuação, que é o trânsito, sempre chegam a nosso conhecimento coisas inusitadas, até mesmo difíceis de acreditar. Um grande exemplo disso são os projetos de lei propostos por vereadores que desejam “contribuir” com o trânsito
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As ideias são as mais variadas possíveis, a exemplo de sinalização regulamentando o estacionamento dos próprios parlamentares, em uma clara inobservância ao art. 80 do Código de Trânsito Brasileiro e a Resolução nº 302/2008 do Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN, que proíbe expressamente tal prática.
Além disso, já vimos casos de vereadores que, preocupados com os índices de violência cada vez mais altos em sua cidade, apresentam proposta com o intuito de proibir o uso do capacete motociclístico nas vias urbanas, como se o equipamento fosse responsável pela insegurança, quando na verdade a sua falta é que traz total insegurança, estatisticamente comprovado, tendo em vista ser o único item obrigatório que proporciona algum tipo de proteção ao condutor desses veículos.
Recentemente, uma “inovação” dos ilustres parlamentares que vem virando notícia é a tentativa de proibir através de legislação municipal a realização da fiscalização de trânsito com remoção de veículo que não esteja devidamente licenciado. Nesse sentido, um vereador de Jequié-BA e outro de Toritama-PE, apresentaram projeto de lei em suas respectivas câmaras municipais com a intenção de pôr fim aquilo que chamam de “blitz do IPVA”.
Reproduziremos parcialmente a seguir o texto dos projetos que são semelhantes nas duas cidades:
“Não haverá recolhimento, retenção ou apreensão de veículos, no âmbito do município, pela identificação do não pagamento do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores ou qualquer outro tributo, nos termos do inciso LIV, artigo 5º da Constituição Federal e nos termos do Código de Trânsito Brasileiro, Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, com as alterações feitas pela Lei nº 13.281, de 4 de maio de 2016. A cobrança de impostos Federais, Estaduais ou Municipais nos limites do território do município deverá seguir rigorosamente o procedimento legal específico em vigor. A Administração pública não poderá exercer o Poder de Polícia de forma ilegal e com a finalidade de arrecadar tributos ou utilizar-se de meios confiscatórios.”
Ao citar a Lei nº 13.281/16 que entrou em vigor no dia 1º de novembro de 2016, revogando a penalidade de apreensão de veículo, dentre outras mudanças, percebe-se claramente a confusão na interpretação da norma.
A penalidade de apreensão do veículo prevista nos artigos 256, IV e 262, ambos do CTB, foi revogada sem nunca ter sido aplicada por falta de regulamentação do CONTRAN e não se confunde com a medida administrativa de remoção do veículo que continua em pleno vigor. Enquanto a primeira requer a instauração de um processo administrativo para que seja imposta pela Autoridade de Trânsito, a segunda pode ser aplicada pelo Agente fiscalizador no momento da abordagem sempre que houver previsão legal.
Para essa irregularidade específica, conduzir o veículo sem estar devidamente licenciado (art. 230, V, do CTB), existe a previsão de aplicação da medida administrativa de remoção do veículo e os Agentes devem cumprir aquilo que a lei determina, pois o ato administrativo praticado é de natureza vinculada.
Existe uma linha de entendimento que defende uma suposta ilegalidade na “apreensão do veículo por não pagamento do IPVA”, utilizando-se de princípios e conceitos de Direito Tributário na construção dessa interpretação. Tal afirmativa não se sustenta sob o ponto de vista legal quando da análise da legislação específica.
Importante destacar que o pagamento do imposto é condição para que o veículo seja licenciado, assim como determina o art. 131, § 2º, do CTB: “O veículo somente será considerado licenciado estando quitados os débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito e ambientais, vinculados ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas”. Quando não se atende o que dispõe a lei, o infrator está sujeito à sanção nela prevista, nesse caso o cometimento de uma infração administrativa como citado anteriormente e a remoção do veículo que será devolvido tão logo se regularize a situação.
Ainda que admitíssemos a legalidade de tal medida, é possível apontarmos outro problema na formulação de uma lei municipal que iria se sobrepor a uma norma de abrangência nacional que é o CTB. A Constituição Federal, que inclusive é citada no projeto de lei, estabelece em seu art. 22, XI: “Compete privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte”. Percebe-se claramente que o município não possui competência para legislar sobre a matéria, que nesse caso implica na renúncia de receita e na intervenção da atuação de órgãos de outras esferas, a exemplo do DETRAN (Estado) e da PRF (União) que não estão sujeitos ao cumprimento do insólito projeto caso se torne lei.
O projeto é nitidamente uma medida popular, que visa tão somente interesses particulares, pois sua inaplicabilidade é evidente, em contrapartida chama a atenção do cidadão (leia-se: eleitor) desinformado acerca dos vícios existentes na proposta e que naturalmente irá aprovar a medida, ficando do lado daquele que a propôs.
Causa surpresa nessas histórias o fato de que certamente parlamentares e câmaras de vereadores devem possuir algum tipo de assessoria jurídica, que parece não atentar para o flagrante descompasso do projeto com todo o conjunto normativo. Essa é sem dúvida mais uma pérola relacionada à matéria “trânsito” produzida pelas câmaras de vereadores Brasil afora.
Quando políticos poderiam unir esforços para regulamentar o trânsito em suas cidades, implementando medidas de segurança objetivando a redução dos números alarmantes de acidentes (mais de 40 mil mortes em 2017, segundo dados da Seguradora Líder, administradora do Seguro DPVAT), o interesse é sempre pessoal, de cunho político, as ações objetivas em prol da coletividade ainda parece ser uma utopia.
Caruaru-PE, 21 de agosto de 2018.
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